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Cinco anos deletados em um átimo. Margarete enxuga os olhos. Não há mais indícios de dor nem de tristeza em seu rosto. A seguir, ela vai me deletar por inteiro. Esquecerá que me conheceu. Foi o que prometeu antes de extirpar nosso casamento de sua mente. Não quer reincidir no erro. Falou com a frieza corporativa que tanto odeio. Assim que o laço neural dela ativar os novos filtros, será o fim. Sem as lembranças, impossibilitada de me enxergar, escutar e sentir, Margarete não saberá que existo. E se o processo for mesmo irreversível como ela afirma, eu jamais a terei de volta.
Em uma época como a nossa, como ainda é possível que destruir seja tão mais fácil do que criar? Culpa desses canalhas do governo, de sua legislação regulatória incompetente. Sem essa burocracia, já teríamos extrapolado o atual estado da arte dos laços. Margarete discordaria, nunca foi a favor do liberalismo tecnológico. Ela prega a evolução responsável e ética da Neuralink, sob o olhar vigilante do regime. Para ela é conveniente defender sua contratante, ignorar o motivo óbvio da lenta evolução dos laços nos últimos anos. Só os retrodesconectados se atrevem a atacar o monopólio da corporação que interliga e gerencia mentes por todo o mundo.
Margarete teria algo a dizer sobre esses idiotas, caso ainda se lembrasse de nossas discussões. Ela logo me esquecerá. Não tenho dúvidas de que está convicta. Meu laço alerta: o divórcio já está devidamente registrado na rede. Margarete não diz nada, apenas me encara com a expressão vaga de quem reencontra um conhecido de infância. Pode ser que ela também esteja interpretando algum alerta de seu laço, ou questionando o comando que apagará, permanentemente, a existência do quase estranho diante dela. Ou talvez os filtros tenham falhado. É angustiante essa incerteza, não saber. Como os retrodesconectados convivem com dúvidas?
O laço neural de Margarete agora está fora de alcance. Minha permissão de acesso à mente dela foi para o limbo junto com a nossa vida de casal. Ela está convicta, mas não é o fim do mundo, não se os novos filtros tiverem falhado. Há margens de falhas toleráveis para toda funcionalidade experimental, Margarete costuma dizer. Mesmo quando estiver disponível no mercado nos próximos anos, esta nova atualização do laço neural não estará totalmente livre de problemas. Me iludo. Margarete tem mil defeitos, mas não é estúpida; jamais implantaria em si o novo laço se houvesse o menor risco deste fritar seu cérebro.
Ferrei tudo desta vez. Maldita hora em que mantive gravadas as lembranças da primeira versão de nossa vida. Achei que os dados estariam seguros na high cloud, mas subestimei os contatos e a capacidade do laço neural de Margarete. Gostaria de saber o que despertou a desconfiança dela. O conhecimento está fora do meu alcance agora. Traí sua confiança, infringi a lei. Nós havíamos acordado o primeiro divórcio e a deleção de nossa vida conjugal. Mas como eu poderia viver longe dela? Eu a amo. Achei que da segunda vez eu poderia fazer funcionar. E por que não? O conhecimento prévio estava ao meu favor. Todos os momentos, tantos os bons quanto os… E também os… Bons momentos. Tantos… bons… momentos.
Tem algo errado. Por que não consigo ir além desses dados? Bons momentos. Quando foi que descarreguei as lembranças do primeiro casamento? Parece que sempre estiveram aqui dentro, mas não me lembro de emitir comandos específicos. Por que as lembranças estão voltando? Bons momentos. Há algo errado com o meu laço. As lembranças do segundo casamento também parecem corrompidas. Estão faltando dados, é impossível que haja apenas boas lembranças. Meu laço não está permitindo acesso, nem cópia, deleção, como se os dados estivessem criptografados. Margarete me sonda. Será possível? A revogação de acesso mental deveria ser mútua. Ela não seria tão cruel. Impossível saber, não tenho mais certeza de nada sobre essa mulher.
Preciso falar com ela, impedi-la, mas está tão convicta. Perdão, eu te amo, me dá outra chance. Deixa eu te tocar, te beijar, por favor, que seja a última vez. Meu corpo está paralisado. Uns poucos segundos. Por que estou me afastando? E o que são esses alertas genéricos de erro? Espere. Entendo: se inexisto no mundo de Margarete, como eu poderia interagir com ela? Os filtros funcionaram: as restrições foram registradas na rede, replicadas para o meu laço e agora sou incapaz de resistir. Mesmo me afastando, noto em Margarete o olhar vago, uma expressão de confusão. Não é preciso ler sua mente para saber: ela não entende o que faz parada sozinha na calçada olhando para a paisagem. Ou o que a ela parece ser só paisagem.
Serei completamente invisível aos seus olhos? Serei um borrão, uma sombra, uma silhueta preenchida por estática? E os meus gritos desesperados? Será que me ouve esgoelando seu nome? Sigo me afastando involuntariamente. Compreendo que preciso cumprir uma distância mínima estabelecida pelos filtros de bloqueio. No fim, não importa. Margarete está fora da minha vida, desta vez para sempre. Só me restam os bons momentos e a lembrança derradeira: Margarete limpando dos dedos as lágrimas que sequer lembra ter derramado.
[Leitura de registro de memória encerrada. Armazenar/Descartar?]
Nota do Autor: este é um dos contos originalmente publicados na antologia Tudo Soma Zero.