As Chaves do Céu

Sem comentários

Coisa mais patética é resmungar alto sem ninguém perto. Pois que a caneta fale e o caderno escute. Guardo meus ouvidos pra lengalenga da TV, algum programa sobre lendas decadentes da MPB. Quase apropriado. É que não basta tá fodido, tem que tá morto, e ter feito a mínima diferença. Tivesse sido meu caso, tudo estaria como deveria. Meu nome e foto ali, um rodapé na história nacional da música, e Edith e Simone vivendo. Já não importa. Ainda que saia uma notinha que seja amanhã, que diferença fará? Isso se eu der conta de ir até o final desta vez.

Cinco dias desde que decidi me matar, mais três até a cirurgia. Não quer dizer nada. Certo é que vou do meu jeito, decidido hoje. Até ontem seria à bala, certeira no crânio, mas o Marcelo me impressionou com o caso do ex-colega da civil. Um desvio ridículo de trajetória e o infeliz vegetou. A família ainda reza pela recuperação. Não à toa Marcelo largou tudo pra viver da terra no meio da Serra do Espinhaço. Esses dias ele está de passagem por BH, visitando a mãe, foi o que disse. Pra mim, veio recrutar mais trouxas. E quase conseguiu. Engraçado como estar fodido deixa sua mente suscetível a qualquer merda. Sei lá como ele me achou ou soube da cirurgia, instinto policial, talvez. Veio com aquele papinho de cura pela natureza, conexão com meu eu-interior.

Tive minha cota de bruxaria, drogas e rock n’roll. A vida me bateu demais pra ainda ter fé nessas merdas. Ou em qualquer entidade-verdadeira, como prega o Marcelo. Com a bebida o buraco é mais fundo. Mas o puto quase me convenceu. Queria que eu erguesse minha casinha de bambu e adobe, bebesse do sangue do mundo, me curasse na tenda do suor e moldasse a minha própria chave do céu. Foi no tear dos sonhos que o Marcelo me perdeu. Um nome mágico pro mesmo mundano esquema de pirâmide. O capitalismo infecta tudo. Não existe isso de viver fora do sistema e ele quase me fez esquecer.

Sigo sem beber. Vontade nunca me falta, mas nos últimos dias tenho tentado rituais diferentes, mais derradeiros. O de hoje seria tomar uma ducha quente, jantar lasanha ao som de rocks clássicos, ignorar as ligações de Miriam, vestir uma velha roupa da banda e pular da sacada. Tudo isso sem chegar perto do estoque minguado do bar. Não está fácil, a abstinência batendo mais e mais forte, sudorese, tremores, a garganta parece um deserto. Mas é preciso, se eu vou mesmo tirar minha vida. Hoje falhei outra vez, me deu de ver TV. Cheguei do AA, peguei uma faca, um queijo inteiro e me larguei no sofá, de sapato. Estava lá até agora, zapeando. Tô farto de politicagem, das mentiras, de tanta futilidade, mesmo assim, eu quis, eu precisava saber se sigo sozinho no fundo do poço. Pelo visto sim, e por um bom tempo ainda.

É quase um alívio saber que estou no fim. Não invejo quem está em queda livre. A percepção pode ser tão lenta, tão dolorosa. Por muito tempo eu achei que tinha os remédios perfeitos pra situações assim. Só me trouxeram mais dor. Rebelde sem causa, sem rumo e sem juízo. Artista medíocre, mais um entre tantos injustiçados pelo mercado, mas que de algum jeito venceria, daria a volta por cima. Bastava seguir tentando. A verdade é que querer e tentar nem sempre basta, não quando a vida tem outros planos em mente.

Isso é derrotismo, diria Miriam, se eu tivesse atendido mais uma de suas chamadas noturnas de check-up. Furar o celular e atirar pra longe foi o maior prazer que tive nos últimos dias. Pena não ter caído da varanda. Eu poderia ver como um sinal e acabar logo com tudo. Miriam nunca cansa de bancar a irmãzona protetora. Consequência de uma vida toda voltada aos outros. Olhasse mais para si poderia estar adulando os próprios filhos e netos. Mas agora sou tudo que resta a ela. E mesmo assim, por pouquíssimo tempo. Não tenho remorso, ela apanhou o bastante da vida pra criar suas próprias cascas. Ela é forte, sempre foi, estará melhor sem mim, livre.

Ouço a chamada do canal na TV: emoção que não acaba. Não percebi que estava no VIVA. É irônico, quase uma piada de mau gosto. Um canal que se sustenta do passado, como tenho feito, revivendo fracassos, remorsos, más escolhas. As piores facetas do ser humano, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, um oferecimento Johnnie Walker, Dreher, Bacardi, Absolut Vodka. Séries e novelas, começos, fins, recomeços, as labutas de artista, os dilemas de pai e filho, o rompimento familiar, as internações. Sonhos se perdendo ao longo do caminho, a vida se impondo, bicos, amores e traições.

A trilha sonora era meu rock, sempre o rock embalando um drama chocante à tradicional família brasileira. Fiz de tudo, fui quem quis, não deixava nada entre mim e o que eu achava ser meu destino rockstar. Foi Edith quem iniciou a mudança e Simone a concretizou. Elas sim foram minhas chaves do céu. Mas a cobrança sempre vem pra quem tenta viver à margem do sistema. Minhas meninas se foram e agora só me resta ir pro inferno.

Todos se foram, só Miriam ficou, sempre a irmãzona protetora, mas tão ingênua. Ela insiste que a estrada das meninas acabou, mas a minha continua. Como pode ser? Como seguir qualquer caminho com a culpa que de ter encerrado o delas? Não. Minha estrada acabou. Está uma noite escura lá fora. A brisa convida. Um mergulho e pronto. É como bungee jump sem corda, skydiving sem paraquedas, não tem mistério. Coração aos pulos, corpo suando, mãos trêmulas, nada disso é novidade. A adrenalina como na época dos shows, drogas, das mudanças de estilo e guinadas de vida. Quase a mesma coisa. A diferença é não ter mais o marasmo pós-tempestade. Só resta a partida no ápice, no clímax, grand finale de gozo eternizado.

Desliguei a TV. O documentário deu lugar a Chitãozinho e Xororó esgoelando pra eu levantar minha mão sedenta e recomeçar a andar. Sedenta está minha garganta. Odeio sertanejo, mas ouvi a dupla assassinar um clássico do rock, um dos meus favoritos. Os cretinos nem cantaram a música toda. É um sinal. A fonte da água viva secou, a ponte rompeu. Ser sincero e desejar profundo não basta. Hoje o que sacode o mundo são bombas, tiroteios e fake news. As batalhas são meros pretextos de uma guerra sem fim. Mudou o hino da minha vida, ou eu mudei?

Quando me tornei tão cético, raso e pequeno? Sei bem. Miriam também, ela só não diz, quer me tirar do poço. A verdade vive nela tanto quanto em mim. Eu bem que queria extirpar isso de dentro, passar tudo pra estes cadernos e me livrar da culpa, como minha irmã quer. O que ela não sabe é que essas páginas amareladas e rasuradas não podem mais me ajudar. Mesmo que me carreguem para outras vidas, outras realidades em que eu pudesse voltar uns passos antes de cada erro, velho ou novo, para iniciar novas linhas temporais onde existisse apenas minha melhor versão, sempre. Mesmo assim, eu acabo voltando ao plano de origem, onde não há rockstar, nem história perfeita, onde matei minha esposa e filha. Perdi minhas chaves do céu e nada mais importa. Perdão, minha irmã, mas você merece mais.

Eu estava certo de que seria hoje. A vida tem um jeitinho todo especial de ferrar com o mais simples dos planos. Não contava, tão tarde da noite, com Miriam batendo na porta feito uma louca. Tinha um olho roxo, a blusa empapada de sangue e lágrimas. Entrou me estapeando, xingando. Parou por um instante para sentir meu hálito, então desabou a chorar. Tinha me ligado até descarregar a bateria do celular. Precisava de mim. O novo namorado surtou no meio da rua, uma crise de ciúmes violenta. A confusão acabou na delegacia. Foi a primeira vez que algo assim aconteceu.

Nunca vi minha irmã tão frágil. Miriam disse que não queria ficar só. Ela desmaiou no meu colo e acabei de coloca-la lá no quarto. Vim pra sala tomar uma dose. À vida. Três dias pra cirurgia, minha irmã caída no próprio fosso, a saída de emergência logo ali na sacada. A garrafa mergulhou por mim. Vou pro quarto fazer companhia pra Miriam. Talvez amanhã eu tente outra vez.

Por que Tente Outra vez?

Como Raul, eu sou baiano. O apreço pelo artista só veio na adolescência, com músicas como Tente Outra Vez, Gita e Metamorfose Ambulante. Os anos criaram muito misticismo e lendas ao redor de sua figura, mas o que ficou para mim foi um artista que nunca deixou de acreditar em si mesmo, em sua obra e no que tinha a dizer, por mais obstáculos que surgissem em seu caminho. Tente Outra Vez é a canção que melhor representa este Raul Seixas.

Nota do Autor: este é um dos contos originalmente publicados no eBook Conte Outra Vez [Raul Seixas].

Deixe seu voto:
- Votos: 0

Categorias:

Que tal deixar um comentário?