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É o inferno de sempre. O senhor me desculpe a demora, mas nem o GPS está dando conta desse trânsito hoje. Tomara que não esteja com pressa. Tem água gelada e balinhas de menta, coisa boa, não essas porcarias de ambulante em sinaleira. Fique à vontade. O ar-condicionado deu defeito ontem, eu ainda não tive tempo de arrumar. Desculpe por isso também. Ainda bem que hoje está fresco, céu azul, dia bonito. A gente tem que ser grato, viu? Ô clima bom o nosso. Às vezes esquenta, mas fazer o quê? É um país tropical – nada a ver com essa conversa fiada de aquecimento global. Mas já vi climas piores, viu? No norte da África, por exemplo, o sujeito até sufoca de tão quente e seco que é. Trabalhei lá por um tempo, conheci aquilo tudo, até o Saara. Faz tempo, foi em setenta, eu era almoxarife em mineradora, veja você.

Conheci o povo, aqueles muçulmanos filhos da puta. São como os evangélicos daqui. Pensa naquele tipo bem pelinha, de culto em sede velha de boteco, fanático mesmo. O muçulmano é dez vezes pior. Povo maluco. Eles têm isso lá de ter várias mulheres, a gente até imagina, mas ver é outra coisa. Tinha esse colega que tinha três esposas. Não sei como, eu mal dei conta de uma, mandei logo pastar. Eles escolhem elas, daí cortam fora o clitóris, que mulher lá é pra procriar, não pode sentir nada. Mulher lá não goza! O senhor me desculpe aí o popular, mas é isso mesmo: elas não gozam, é proibido. Dizem que o homem também corta a cabecinha, que é pra facilitar, afinar. Muçulmano é tudo assim, barbado da pistola longa e fina.

Eu já vi cada coisa nesse mundo… O problema é a religião, essa coisa de igreja, fé, isso ferra com a cabeça de gente pobre, e o povo de lá é miserável, acaba ficando na mão dos osamas e saddams. O Brasil fica longe disso não, aqui só falta explosão porque morte tem até demais; a fé é negócio, é política, tudo misturado. A corja daqui não manda derrubar prédio com avião porque o que interessa é dinheiro. E o pobre segue na miséria, sofrendo com fé. É dureza essa vida de sempre correr atrás e ficar preso em trânsito, fila, burocracia.

Acabaram de avisar no celular: tem manifestação fechando a avenida lá na frente. Tinha me esquecido. Bem na véspera de feriadão. Típico. Datas esse povo sabe escolher, né? Centro é complicado demais, qualquer coisinha entulha tudo, chuva, obra, manifestante. Eu nem acho errado, sabe? Tem mais é que manifestar mesmo, reclamar, esse país está uma zona. Mas tem que saber fazer, não pode atrapalhar a vida de gente decente, trabalhadora. Também não pode sair por aí quebrando tudo porque quem paga é a gente mesmo. Tem que raciocinar, aprender a lutar. Todo mundo sabe que a corrupção é um problema, mas parece que ninguém aprende: políticos roubam, roubam, roubam, e ainda conseguem ser eleitos. As pessoas vendem o voto por uma cesta básica, aí fica difícil. Mas é problema de quê? Falta de educação, é claro, tem que educar o povo. Não é só melhorar escola. Eu mesmo, que só tenho segundo grau, graças a Deus, sou educado, conheço os problemas.

No Brasil a política é para enriquecer. Só ver os safados de sempre: é coronel do Maranhão, bilionário que não larga osso, presidente papa-poupança que cai e volta, deputado, governador e senador com nome sujo, e ainda no cargo. É denúncia, propina, golpe, contragolpe. Tem que acompanhar, ficar por dentro pra poder fazer sua parte. E tem que reconhecer quando a merda explode; vê o caso do impeachment da presidente – e digo presidente mesmo, que presidenta é o escambau; além de roubar ainda querem matar o português?

Votei nela, não tenho vergonha de dizer. Até achei que ela não tinha feito nada errado, que todo mundo é inocente até provar, não é assim? Pois é, agora nem sei. Se todo mundo parece ter o rabo preso, se até o Lula traiu o Brasil, ela deve ter culpa também. Fico puto porque pra mim é tão simples: se recebo uma denúncia, o que faço? Mando investigar, porra. Tomo atitude, chego lá para os companheiros e aperto, digo que vou investigar todo mundo suspeito e quem estiver envolvido vai cair feio, que no meu partido não fica corrupto nem safado. Chamava a imprensa no mesmo dia, falava das denúncias recebidas, “nosso governo vai investigar e punir os responsáveis”. Mas político é tudo burro, prefere ficar quieto, fingir de morto. Hoje em dia nada mais fica escondido. Esse povo não aprende, por isso que o país está nessa merda, nesse vai-não-vai do caralho.

Foto: Cristiane Mattos/O Tempo

Você me desculpe o mau jeito, mas é de dar ódio. Você tenta se manter antenado, tenta votar com consciência, daí esses canalhas te traem. É tudo treta de partido, não tem um que presta, essa é que é a verdade. Tem que resolver a corrupção, povo tem que se unir, fazer petição, que hoje é bem fácil, pega lá um monte de assinatura rapidinho na Internet, faz logo uma lei nova. Fosse por mim era até mais simples, três coisas para resolver.

Primeiro: político envolvido em corrupção tem que ser julgado como cidadão comum, sem essa de imunidade parlamentar, de foro privilegiado, nada disso. Segundo: condenado ou não, o político não pode se candidatar a mais nada, perde o direito de participar da política. Terceiro: todo o dinheiro roubado deve ser devolvido em até quarenta e oito horas. Isso aí, simples. Não tem por que complicar.

Entendo dos problemas, e nem é porque vejo TV ou leio muito – faço isso também porque a gente tem de estar ligado –, mas sinto nas ruas, sabe? A gente entende o país é pelas pessoas. A maioria delas não está nem aí, é tudo interesse próprio. Empresários, por exemplo: tratam o empregado como escravo. Eu sei por que já vivi muito isso, mas me libertei. Hoje, acima de mim só Deus e avião.

Outro dia eu estava carregando um empresário bem escroto: ele disse que, com crise ou sem crise, é preciso jogar duro, que na empresa dele funcionário tem que dar lucro, senão é rua; se não fosse por lei, ele não pagaria direito nenhum. Porque o empregado é importante, mas é o empresário que carrega o país nas costas, ele disse. Acredita? Até tentei argumentar, mas sabe como é esse tipo de gente. Ouvinte bom e atencioso assim como o senhor está em falta.

Se me permite, em quem o senhor votou no ano passado? Tudo bem se não quiser dizer. Na verdade, tenho evitado falar disso, a pergunta é difícil, as pessoas estão muito sensíveis. Mas o senhor me parece bem racional. Tremendo pega pra capar, nunca vi eleição como essa, até facada em candidato teve. Se bem que eu truco essa história aí. Já viu facada sem sangue? O homem lá é malandro, e tem que ser mesmo: os comunistas são desonestos. Tem que fazer o jogo deles. Votei neles a vida toda, hoje sei a verdade e me arrependo – nem vermelho eu uso mais, queimei tudo. Quando chegaram lá eles me traíram, traíram o Brasil. Tanta coisa errada pra consertar e ficavam de nhe-nhe-nhe de ideologia, plano-gay, do tal marxismo de cultura. E a coisa ia piorar: vi esse filósofo na internet alertando contra a invasão muçulmana. Você acha que essa história de migração na Europa é a troco de nada? É pra destruir o capitalismo. Eles são farinha do mesmo saco.

Graças a Deus que o homem lá não morreu, já pensou? Mais quatro anos nas mãos dos calhordas? Não senhor, chega, esses daí não me enganam mais. Nem adiantou tentarem fraudar as urnas, a voz do povo falou mais alto. O Brasil precisa é de ordem, pulso, gente nova que não está aí pela mamata, que quer colocar o país no rumo. Eu me informo, sei o que dizem por aí do presidente, mas é como eu disse, tem que ouvir as ruas e não dar trela para fake new – é assim que fala, né? O povo está cansado de roubalheira, da violência, impunidade. Quero ver ligar pra gay, índio, feminista e o escambau com uma arma enfiada na cara, desempregado, passando fome, sem-teto. Eu sei bem como é, mas a violência é o pior. E já que o governo não dá jeito, que pelo menos me deixe garantir minha segurança. Pode apostar que vou me sentir bem mais seguro dirigindo por aí com uma arma a tiracolo.

Agora, se o homem trair a gente também, sem problema, é só manifestar, que nem da outra vez, pôr pressão. Mas duvido que precise. Ele não é burro; não vai chegar em Brasília e ficar mandando matar gay, índio, acho mesmo é que ele não tá nem aí para eles, só quer tirar o país da lama. E quem é que não tem preconceito, não é verdade? Não importa o que ele pensa ou deixa de pensar, desde que não prejudique ninguém. Tenho lá as minhas birras, mas cuido da minha vida. Que cada um cuide da sua. E olhe que não concordo em tudo com o homem: acho que empresário tem regalia demais, tem que ajudar é o trabalhador, mas se, para sair da crise, a gente tiver que fazer sacrifícios… Eu sou contra extremismos, mas, às vezes, pra melhorar tem que piorar antes.

Vai descer por aqui mesmo? Ainda estamos longe… Mas do jeito que o trânsito está, é capaz de o senhor chegar mais rápido a pé. É até melhor pra saúde. Se pudesse largava o carro por aqui, mas sabe como é, a gente tem que ganhar a vida. Desculpe qualquer coisa. Vou encerrar aqui a viagem do senhor. Tome aí: cinco estrelas. Se puder retribuir… Tenha um bom dia e vá com Deus, que é brasileiro, mas não dá jeitinho.

Nota do Autor: este é um dos contos originalmente publicados no livro Vozes.

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